Preço do petróleo mais baixo em décadas, desaceleração chinesa, recrudescimento da política monetária estadunidense com consequente desvalorização das demais moedas nacionais (em especial de emergentes), queda da demanda global à medida que as economias seguem presas ao atoleiro do desemprego e baixo crescimento. Essa combinação bombástica de fatores tem sido apontada por muitos analistas como a tempestade perfeita (“perfect storm”, no linguajar dos “mercados”) capaz de produzir um iminente tsunami financeiro internacional, maior e mais grave do que aquele de 2008, conforme sustentam os mais alarmistas.
A tese não é fruto de alguma mente esquerdista conspiratória, como se apressariam em acusar os defensores de sempre da ordem de coisas. Atenção ao que nos diz William White, ex-economista-chefe do Banco de Compensações Internacionais (BIS), uma espécie de “clube dos banqueiros centrais de todo mundo”, que agora preside o comitê de revisão da OCDE: “A situação é pior do que era em 2007. Nossa munição macroeconômica para combater recessões foi toda esgotada. Dívidas continuaram a acumular-se ao longo dos últimos oito anos e atingiram níveis tais em todas as partes do mundo que se tornaram uma causa potente para um estrago”, disse ele na véspera do Fórum Econômico Mundial realizado em Davos. O BIS foi uma das poucas organizações a advertir durante 2006 e 2007 sobre os níveis instáveis de empréstimos bancários que eventualmente levariam à queda do Lehman Brothers. A mensagem central de White agora é de que diferentemente de 2008, os Estados não terão mais a mesma capacidade para salvar o sistema financeiro em derrocada.
Diante desse diagnóstico, um analista de investimentos da Royal Bank of Scotland aconselhou seus clientes na semana retrasada a “vender tudo”, exceto os seguros e títulos de alto grau de confiabilidade, apontando um ano “cataclísmico” e a forte probabilidade de um crash do mercado de ações.
Se, a despeito de otimistas, céticos e alarmistas (o mercado tem para todos os gostos), é difícil cravar com certeza se e quando isso ocorrerá de fato, a hipótese é, no mínimo, digna de atenção. Parece difícil de contestar: na pior das hipóteses um novo crash, na melhor delas um longo período de estagnação e/ou baixo crescimento mundial (“estagnação secular”) que, sem uma eloquente mudança de rumos, poderá acabar levando inevitavelmente ao desfecho que alguns dizem ser já inevitável. No Brasil, um dos maiores e mais ricos países do globo, onde a agenda é de mais “laissez faire” e austeridade, o modelo faz água a olhos vistos.
A história que nos trouxe até aqui é de amplo conhecimento. Salvo de si mesmos pelos contribuintes e Estados nacionais, que ativaram a velha socialização das perdas após um longo período de privatização dos ganhos, pouco se fez além de uma enorme injeção de dinheiro farto e barato nos mercados, por meio dos chamados bailouts e quantitative easings. O plano parecia perfeito. Os jogadores foram salvos, cresceu o (mal) endividamento dos Estados e os contribuintes-trabalhadores foram novamente convocados a sustentar a continuidade da festa: austeridade, corte de pensões, aposentadorias, salários e gastos sociais. Sob esse esquema, e utilizando-se de iniciativas e ações quase apenas cosméticas, a dinâmica de funcionamento e gestão da economia global tem se mantido praticamente a mesma de antes da grande crise de 2008. Em tempos de aprofundamento de incertezas somado à hiper-liberalização financeira, o dinheiro farto simplesmente não chega às esferas “reais” da produção e consumo, preso que está à velha conhecida “armadilha da liquidez”. Em bom português: taparam o sol com uma grande peneira. Enquanto isso, e de modo previsível, avolumam-se problemas sociais, políticos e econômicos de toda natureza, com destaque especial para o previsível crescimento exponencial das taxas de desigualdade de renda e riqueza. Com uma ajuda especial dos constrangimentos estruturais da situação chinesa, que até então vinha ajudando a jogar lenha e manter acesa essa insustentável fogueira, a festa parece caminhar para um desfecho indesejável.
Trata-se de uma velha lição de Marx que David Harvey tem nos lembrado com especial competência no que se refere a conjuntura atual: quando o capital se depara com uma grave contradição (leia-se problema) geralmente procura movê-la de um setor para outro, de uma região geográfica para outra, adiando, sem enfrentá-la de frente ou resolvê-la de fato, já que o capitalismo perpetua-se justamente como uma constante movimentação de contradições em torno de si mesmas. Se o problema está no sistema bancário, é movido para o Estado, se está no Estado, movem-no para o contribuinte via tributação e austeridade. Uma vez em suas costas, para onde seria novamente movido agora? Assim como a possibilidade de um novo crash, é difícil prever.
De qualquer forma, sem um amplo conjunto de mudanças estruturais – como reformulação e algum endurecimento regulatório, auditoria e reestruturação das dívidas, programas de investimento público direto e estímulo ao emprego, transferência e distribuição de renda, ativação e fortalecimento do bem-estar (saúde, educação, transporte) e medidas de democratização da gestão dos Estados e das economias – a economia mundial terá poucas chances. Não chega a ser curioso observar, no entanto, que é justamente da esquerda “radical” que vem a defesa desse óbvio e razoável programa de medidas para atacar o problema aqui e alhures, o único “pacote” capaz de salvar os capitalistas deles mesmos, conforme assumiu recentemente até mesmo Wolfgang Münchau, colunista e editor associado do “insuspeito” Financial Times.
É que deixada à sua própria sorte a clássica mentalidade liberal de que “a busca egoísta pelo ganho individual sempre leva à felicidade coletiva”, levada contemporaneamente aos píncaros da estreiteza de pensamento estratégico em banqueiros e financistas bem como em seus funcionários de sempre instalados no poder, nos levará todos a uma tragédia ainda maior.
A humanidade repetidamente tem pago preços altíssimos por não aprender com sua própria história. Em termos políticos, e diante da polarização que avança, começa a ficar claro que a única alternativa político-eleitoral ao que propõe a esquerda dita “radical” ou “extrema” (Sanders no EUA, Podemos/Syriza/Bloco de Esquerda na Europa, oposição de esquerda no Brasil e na América Latina), é a direita belicosa e obscurantista, chegando, inclusive, às suas frações velada ou abertamente fascistas.
Tudo somado, parece que começamos a caminhar aos poucos para um cenário político no mínimo análogo àquele dos duros anos 30 dos século passado. Conforme o relógio gira, fica patente a necessidade inescapável de algum tipo de “rompimento” desse estados de coisas. Espera-se que à esquerda. Essa seria a única forma de evitarmos a barbárie. O risco da apatia é alto demais para ser assumido. É hora de agir.
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Edemilson Paraná é doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). É autor do livro A finança digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional (Editora Insular, no prelo).